LIÇÃO 3: O USO HISTÓRICO DO KANA

Agora que você conhece os silabários básicos da língua japonesa, vamos tratar de um assunto que comumente é deixado de lado pelos livros didáticos convencionais, mas que em nossa opinião é muito importante para entendermos a evolução do idioma.

3.1. A QUESTÃO PRONÚNCIA X ESCRITA

Algo que devemos ter sempre em mente é que com o passar do tempo, a pronúncia muda as palavras, sendo ela, portanto, uma das maiores influências nas mudanças que ocorrem na escrita. Dificilmente se escreve como se fala, pois cronologicamente a linguagem caminhou (e ainda caminha) da fala, para escrita, não o inverso.

No início, o Kana e a pronúncia da língua eram bastante sincronizados, mas inevitavelmente essa sincronia foi diminuindo ao longo do tempo. Nós discutiremos os motivos que levam à mudança de pronúncia das palavras na lição 9, mas não se assuste, porque isso é um processo natural de qualquer idioma, haja vista que uma língua é algo orgânico e não estático. Pronúncia e escrita sofrem alterações no decorrer das gerações, embora a fala evolua muito mais rapidamente que a escrita – afinal, mais falamos do que escrevemos, não é mesmo?

Apenas para ilustrar, observe a evolução da palavra “você” em português:

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Por volta do século XIX o uso do Kana se tornou confuso devido às mudanças na pronúncia e houve então, uma tentativa de restauração do uso original dos tempos antigos, chamada de “uso histórico do Kana” (れきしてきかなづかい), também chamada de “uso adequado do Kana” (せいかなづかい), durante o tempo em que foi empregado. O uso histórico do Kana em sua grande parte, representava com precisão os sons da língua como era falada no Período Heian (794 a 1185).

Embora a medida de restaurar a ortografia clássica possa ter sido correta em termos históricos, vale ressaltar que tal sistema já não condizia com a pronúncia moderna. Vejamos as características do uso histórico do Kana:

A) KANAS OBSOLETOS OU DE USO RESTRITO: aqui nos referimos a fonemas que antes da reforma ortográfica eram comuns e que atualmente são obsoletos ou tiveram seu uso restringido.

I. Os fonemas 「ゐ」 e 「ゑ」, que são obsoletos no uso moderno do Kana, eram comuns no uso histórico, sendo pronunciados como 「い」 e 「え」 respectivamente:

ゐる → いる (居る)

こゑ → こえ (声)

II. O fonema 「を」 é pronunciado como 「お」 e podia ser usado não apenas como partícula, mas também em outros tipos de palavras:

をばさん →  おばさん

III. Os fonemas 「ぢ」 e 「づ」, pronunciados como 「じ」 e 「ず」respectivamente, eram usados com mais frequência:

おぢいさん →  おじいさん

まづ → まず (先ず)

B) TENKO: fenômeno no qual alguns Kanas, dada uma determinada condição, tinham sons diferentes de seus originais.

I. Se os fonemas 「は」, 「ひ」, 「ふ」, 「へ」 e 「ほ」 estivessem localizados em qualquer parte de uma palavra que não fosse o seu início, eram lidos 「わ」, 「い」, 「う」, 「え」, 「お」 respectivamente:

かは →  かわ(川)

あひます →  あいます

つかふ →  つかう

まへ →  まえ (前)

おほい →  おおい(多い)

II. Sequências de Kana, tais como 「あう」, 「あふ」, 「かう」, 「かふ」, 「さう」, 「さふ」・・・  eram lidas 「おう」, 「こう」, 「そう」・・・:

あふぎ →  おうぎ (扇)

いかう →  いこう

さうです →  そうです

ありがたう →  ありがとう

たふとい →  とうとい (尊い)

しなう →  しのう

まうす → もうす (申す)

だらう →  だろう

ちらう → ちろう

かうかう →  こうこう

ざふきん →  ぞうきん

III. Sequências de Kana, tais como 「きう」, 「きふ」, 「しう」, 「しふ」, 「ちう」, 「ちふ」・・・ eram lidas 「きゅう」, 「しゅう」, 「ちゅう」・・・:

きうり → きゅうり

うつくしう → うつくしゅう

えいきう → えいきゅう

じふじ → じゅう

IV. Sequências de Kana, tais como 「けう」, 「けふ」, 「せう」, 「せふ」, 「てう」, 「てふ」・・・ eram lidas 「きょう」, 「しょう」, 「ちょう」・・・:

けふ → きょう (今日)

でせう → でしょう

けうしつ → きょうしつ

てふ → ちょう

V. Além dos casos expostos acima, outros tipos de tenko são 「きやう」, 「しやう」, 「ちやう」・・・, lidos 「きょう」, 「しょう」, 「ちょう」・・・, e 「くわ」, 「ぐわ」 que eram lidos 「か」, 「が」:

きやうだい → きょうだい (兄弟)

たいしやう → たいしょう (大将)

ちやうちやう → ちょうちょう (町長)

くわし → かし (菓子)

マングワ → まんが (漫画)

ゆくわい → ゆかい (愉快)

C) SOKUON E YOUON: letras pequenas geralmente não são utilizadas no uso histórico do Kana. Portanto, os fonemas grandes 「つ」, 「や」, 「ゆ」, 「よ」nos casos de sokuon e yoon são lidos da mesma maneira como 「っ」, 「ゃ」, 「ゅ」, 「ょ」:

あつた → あった

ちやんと → ちゃんと

D) OUTROS CASOS: aqui incluímos o caso em que, em escritos antigos, o fonema 「む」 pertencente a um verbo auxiliar é lido 「ん」:

逢はむ → あわん

~せむ → ~せん

ありけむ → ありけん

取りてむ → とりてん

給ひなむ → たまいなん

吹かむとす → ふかんとす

まかりなむずる → まかりなんずる

NOTA: A grafia histórica não deve ser confundida com o hentaigana, kana alternativo que foi declarado obsoleto com as reformas ortográficas de 1900.

3.2. O ALINHAMENTO DA ESCRITA COM A PRONÚNCIA MODERNA

A imposição do sistema ortográfico clássico naturalmente gerou um fardo sobre os alunos, resultando em pedidos de reforma. Afinal, imagine a confusão que era pronunciar uma palavra de um jeito, mas escrevê-la de outro. Baseados no que vimos no tópico anterior, por exemplo, a leitura (きょう) do Kanji (京) era escrita (きゃう), e a leitura (きょう) do Kanji (轎) era escrita (けう). Verbos que agora terminam em (う), como (かなう), eram escritos com (ふ), ou seja, (かなふ). A mudança para o sistema moderno de grafia, ocorrida em 1946, foi feita depois de sessenta anos de muitos debates que visavam alinhar a escrita com a pronúncia moderna.

Apenas para traçar um paralelo, aqui notamos algo que não ocorreu na língua inglesa, por exemplo. Nela há uma grande irregularidade no quesito “pronúncia x escrita”, fato que é atribuído por muitos à ausência de uma autoridade central que pusesse ordem no caos reinante na língua inglesa após a Conquista Normanda. Durante mais de três séculos, os dialetos correram soltos, se reproduziram e multiplicaram. O francês dos normandos acabou sendo substituido pelo inglês, mas a anarquia continuou com o abandono de sempre, refletindo a total indiferença dos ingleses quanto a questões de coerência na ortografia. Às vezes as pessoas usavam a grafia de uma região e a pronúncia de outra. É por isso que as palavras busy (ocupado) e bury (enterrar) são escritas de acordo com o dialeto da região ocidental da Inglaterra, enquanto a pronúncia da primeira é /bêzi/, típica da região de Londres, e a da segunda é /berry/, proveniente de Kent.

Houve um processo de padronização da língua inglesa que se iniciou em princípios do século dezesseis com o advento da litografia, e acabou fixando-se nas presentes formas ao longo do século dezoito, com a publicação dos dicionários de Samuel Johnson (1755), Thomas Sheridan (1780) e John Walker (1791). Desde então, a ortografia do inglês mudou em apenas pequenos detalhes, enquanto que a sua pronúncia sofreu grandes transformações. O resultado disto é que hoje em dia temos um sistema ortográfico baseado na língua como ela era falada no século 18, sendo usado para representar a pronúncia da língua no século 20. Acredita-se que isso se deu devido ao conservadorismo da imprensa que continuava a grafar as palavras no sistema antigo, não se abrindo às “inovações” da pronúncia do inglês cotidiano. Perceba como no Japão a corrente conservadora perdeu força neste quesito. Vamos representar este comparativo através de um gráfico:

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