Chegou a hora de abordarmos de maneira mais detalhada o Kanji, que é uma das coisas mais difíceis da língua japonesa. Mas não se desespere, pois dividiremos o assunto em duas lições, tentando fazer uma abordagem sistemática, a fim de que você passe a encarar o seu aprendizado não como um fardo, mas sim como um passatempo. Então, prepare-se para esta aventura que busca desmistificar os temidos Kanji.
4.1. O KANJI NA LÍNGUA JAPONESA ATUALMENTE
Você já sabe que os Kanjis representam conceitos materiais e abstratos e que foram introduzidos na língua japonesa por meio de escritos trazidos por monges budistas quando ainda não havia expressão escrita nela. No sistema moderno de escrita japonesa, o Kanji é usado em conjunto com os silabários Hiragana e Katakana e cerca de 5.000 a 10.000 caracteres são utilizados.
Na era Meiji durante o século XIX, as reformas significativas inicialmente não tiveram impacto sobre o sistema de escrita japonesa, no entanto a própria língua foi mudando devido a um afluxo maciço de novas palavras, tanto emprestadas de outras línguas ou recém-cunhadas, e também como um resultado de movimentos, tais como o influente「げんぶんいっち」que resultou que o japonês fosse escrito na forma coloquial da língua em vez da ampla gama de estilos históricos e clássicos usados até então. A dificuldade da escrita japonesa foi tema de debate, com várias propostas para que o número de Kanjis em uso fosse limitado. Além disso, a exposição a textos estrangeiros levou a propostas sem sucesso para que o japonês fosse totalmente escrito em Kana ou Roomaji. Este período se deparou com as marcas de pontuação de estilo ocidental sendo introduzidas na escrita japonesa.
Em 1900, o Ministério da Educação sugeriu três reformas destinadas a melhorar o ensino da escrita japonesa:
I. Padronização do silabário Hiragana, eliminando assim o sistema Hentaigana, até então em uso;
II. Restrição do número de Kanjis ensinados no ensino fundamental (aproximadamente 1200 caracteres);
III. Reforma da irregular representação por meio do Kana das leituras ON dos Kanjis, para estarem em conformidade com a pronúncia.
As duas primeiras reformas foram bem aceitas, mas a terceira foi muito contestada, principalmente pelos conservadores, sendo deixada de lado em 1908. O fracasso parcial das reformas de 1900, combinado com o aumento do nacionalismo no Japão, impediu de fato uma reforma significativa do sistema de escrita. Entretanto, devido às inúmeras propostas para a restrição do número de Kanjis em uso, vários jornais começaram a restringir voluntariamente o uso de Kanjis e a utilização de furigana aumentou. Porém, sem endosso oficial à tal prática, houve muita oposição.
No período que sucedeu a Segunda Grande Guerra, houve uma rápida e significativa reforma do sistema de escrita. Isso foi em parte devido à influência das autoridades de ocupação, mas, principalmente por causa da remoção dos conservadores do controle do sistema educacional, o que significava que as revisões anteriormente paralisadas poderiam prosseguir. As principais reformas foram:
I. O alinhamento do uso do Kana com a pronúncia moderna (げんだいかなづかい), substituindo o até então uso histórico do Kana;
II. A promulgação da “Touyou Kanji” (当用漢字), lista de Kanjis limitada a 1850 caracteres para o uso que deveriam ser aprendidos durante os 6 anos do ensino fundamental;
III. A simplificação de alguns Kanjis (しんじたい), fato que deu ao antigo conjunto de caracteres o nome de “Kyuujitai” (きゅうじたい), isto é, formas obsoletas de Kanjis que eram utilizados antes da Segunda Grande Guerra. Logicamente, você não deve confundir a simplificação japonesa com a chinesa, feita em 1949, embora possa haver alguns caracteres semelhantes. Observe a figura comparativa com alguns exemplos:
IV. A promulgação da “Jinmeiyou Kanji” (人名用漢字), lista composta por Kanjis que em conjunto com o Touyou Kanji podiam ser usados para nomes. O “Jinmeiyou Kanji” vem sendo atualizado ao longo dos anos pelo Ministério da Justiça e desde 2017, possui 863 caracteres.
Além disso, as placas, a prática da escrita, etc, passaram a ser em yokogaki migi (escrita da esquerda para a direita). Por exemplo, a placa da estação de Tóquio era (駅京東), mas passou a ser (京東駅). Entretanto, a direção tradicional de escrita ainda é vista do lado direito (ou estibordo) de veículos, barcos, etc, de modo que o texto é executado a partir da parte dianteira do veículo para a parte de trás (ou da proa à popa).
Após a criação do Touyou Kanji, ainda existiam muitas palavras que continham caracteres que não tinham sido colocados na lista. Quando isso acontecia, havia dois procedimentos para resolver o problema:
1. Mazegaki: procedimento com o qual o Kanji era substituído por seu som equivalente em Kana:
2. Kakikae: procedimento com qual o Kanji era substituído por outro de mesmo som:
No ano de 1981, o governo japonês expandiu o Touyou Kanji, dando origem ao “Joyou Kanji Hyo” (lista dos caracteres chineses para uso diário), que incluía 1945 caracteres regulares e 166 caracteres especiais usados apenas para nomes de pessoas. Essa lista foi revisada no ano de 2010 e passou a ter 2136 regulares (foram retirados 5 caracteres e incluídos 196). Documentos do governo, jornais, livros e outras publicações para uso de não especialistas usam apenas esses Kanjis. Escritores de outros materiais são livres para usar qualquer ideograma.
Normalmente a grande maioria dos japoneses já sabe Hiragana e Katakana antes de entrar na escola de ensino fundamental, pois eles acabam aprendendo na escolinha. Entretanto, os japoneses aprendem Hiragana e Katakana oficialmente no primeiro ano da escola de ensino fundamental. Logo depois que os alunos aprendem o Kana, eles começam a aprender Kanji. Para cada série escolar, há um número estabelecido de caracteres que os alunos devem aprender. Observe a tabela abaixo:
Os caracteres aprendidos durante os seis anos da escola primária, que formam a sub-lista do jouyou Kanji chamada “Kyouiku Kanji”, compreendem o número mínimo de Kanjis que um japonês deve conhecer, sendo suficientes para ler aproximadamente 90% dos utilizados em um jornal (cerca de 60% com 500 caracteres). Os outros 1110 caracteres, eles aprendem sozinhos e espera-se que ao terminar o colegial, saibam os 2136 Kanjis.
Existe o “Teste de Aptidão de Kanji do Japão” (日本漢字能力検定), conhecido como “Kanji Kentei” (漢字検定) ou simplesmente “Kanken” (漢検). Ele é dividido em 12 níveis (10 níveis + 2 subníveis) cumulativos, sendo o 10º o mais fácil e o 1º, o mais difícil. Os níveis 10, 9, 8,7, 6 e 5 equivalem cada um aos anos da escola primária. Sendo assim, no nível 5 é exigido que o candidato tenha o mesmo conhecimento de um aluno que terminou o 6º do primário (1026 Kanjis). Os outros 1110 Kanjis são divididos nos níveis 4, 3, Pré 2 e 2, isto é, espera-se que ao prestar o nível 2, o candidato tenha conhecimento dos 2136 Kanjis de uso diário. Já o nível Pré 1, exige conhecimento dos Kanjis do “Jinmeiyou Kanji”, totalizando cerca de 3.000 Kanjis. Finalmente, no nível 1 é exigido conhecimento de mais 3.300 Kanjis aproximadamente, totalizando 6.300! Disponibilizamos uma lista aqui.
NOTA: os Kanjis que não constam nas listas oficiais – de uso diário e de nomes – são chamados 「ひょうがいじ」 (表外字) ou 「ひょうがいかんじ」 (表外漢字) e costumam ser usados na literatura e mangás.
Os substantivos e radicais de adjetivos e verbos são quase todos escritos com caracteres chineses. Também os advérbios são escritos em Kanji com bastante frequência. Isso significa que você precisará aprender os caracteres chineses para ser capaz de ler praticamente quase todas as palavras do idioma. Porém, nem todas as palavras são escritas em Kanji. Por exemplo, mesmo que o verbo “fazer” tecnicamente possua um Kanji associado a si, é sempre escrito em Hiragana. Critérios individuais e um senso de como as coisas são normalmente escritas são necessários para decidir quando as palavras devem ser escritas em Hiragana ou Kanji. De qualquer modo, a maioria das palavras em japonês será escrita em Kanji quase sempre (livros infantis ou qualquer outro material direcionado a um público que não saiba muitos Kanjis são uma exceção a isso).
A maioria dos Kanjis foi inventada pelos chineses, mas há alguns ideogramas que são de origem japonesa. Estes são conhecidos no Japão como 「こくじ」 (国字), literalmente "caracteres nacionais". O termo 「わせいかんじ」 (和制汉字), isto é, "Kanji feitos no Japão" também é usado para se referir aos kokujis. Por exemplo, o ideograma usado para escrever 「はたらく」 (働く) é de origem japonesa. Estes ideogramas são formados da maneira usual dos caracteres chineses, ou seja, através da combinação de componentes existentes, embora utilizando uma combinação que não é usada na China.
E para finalizar este tópico, há ainda o 「あてじ」 (当て字) que, numa primeira definição, são composições de ideogramas usadas apenas para valor fonético, não tendo relação com o significado individual em si dos caracteres. São usadas para representar palavras nativas e principalmente estrangeiras, sendo análogo ao man'yougana (万葉仮名), que como já vimos, era o sistema silabário usado na sociedade japonesa pré-moderna. Observe o exemplo abaixo:
- “Sushi” é frequentemente escrito com o ateji 「寿司」. Mas o ideograma 「寿」 significa "longevidade" e 「司」 significa "administrar", ou seja, nenhum dos caracteres tem algo relacionado a este prato. Entretanto, são usados para fins fonéticos, haja vista que são pronunciados “SU” e “SHI” respectivamente.
Numa segunda definição, o termo ateji é também usado para o processo oposto, ou seja, escrever palavras usando Kanjis em caráter de significado apenas, desconsiderando as leituras individuais (mais detalhes nos próximos tópicos).
Embora no japonês moderno alguns atejis ainda sejam utilizados, este método de se representar palavras tornou-se ultrapassado, sendo substituído pelo Kana ou novos ideogramas.
4.2. AS LEITURAS ON E KUN
Um ideograma chinês pode ter várias pronúncias possíveis (em casos raros, dez ou mais), dependendo do seu contexto, significado pretendido, uso em compostos, e localização na frase. Estas pronúncias, ou leituras, são normalmente categorizadas em on'yomi ou kun'yomi (frequentemente abreviado On e Kun).
1. On’Yomi (音読み): é a leitura original chinesa do caractere na época em que este foi introduzido no Japão. Note que ela se trata apenas de uma aproximação feita pelos japoneses devido à limitação da fonética de seu idioma.
Devido à limitação da fonética japonesa, as leituras On eram apenas aproximações do som original chinês, e com isso também muitas vezes sons chineses parecidos, mas diferentes eram introduzidos no Japão como sendo um único som. Vamos usar o português, apenas para que você entenda como se deu mais ou menos esse processo: imagine as palavras “só” e “sol”. São parecidas no som, mas diferentes. O que os japoneses da época fariam se tivessem que introduzi-las em sua língua? Eles pensariam: “Ah, como não temos o “l”, “sol” passará a ser pronunciado “só”’. Então “só” e “sol” que originalmente são palavras distintas e possuem pronúncias diferentes, no japonês, passam a compartilhar a mesma pronúncia.
Para fins didáticos a leitura ON, é escrita em Katakana.
NOTA: obviamente, pelo fato de a leitura On se tratar de uma aproximação da pronúncia chinesa original, você não deve achar que aprenderá palavras em chinês ao memorizar Kanjis em algum curso de japonês.
Muitos ideogramas possuem mais de uma leitura On. A quantidade de leituras On para o mesmo Kanji indica o número de vezes que ele foi reintroduzido no Japão. Em outras palavras, cada leitura On para o mesmo ideograma veio de diferentes épocas e/ou regiões da China. Isto aconteceu porque diferentes dinastias assumiram o poder e, como a China era muito grande, cada dinastia tinha sua própria pronúncia para os vários ideogramas e fazia dela a leitura oficial durante seu governo. Como naquela época a China era grande e maravilhosa aos olhos dos japoneses, quando os chineses traziam uma “nova” pronúncia para os Kanjis que todos já conheciam, os nipônicos tratavam de acrescentá-la ao monte.
Dado o que foi exposto, a leitura On é classificada em quatro tipos:
a) Go'on (呉音): são leituras provenientes da região de Wu, que está nas proximidades da moderna Shangai, durante os séculos V-VI;
b) Kan'on (漢音): são leituras provenientes da Dinastia Tang nos séculos VII-IX, principalmente da fala padrão da capital, Chang'an;
c) Tou'on (唐音): são leituras provenientes da pronúncia de dinastias posteriores, como as dinastias Song e Ming; abrangem todas as leituras adotadas a partir da era Heian ao período Edo. Também é conhecido como “Tou’sou’on;
d) Kan'you-on (慣用音): são leituras equivocadas dos Kanjis que se tornaram aceitas no idioma. Em alguns casos, são as leituras reais que acompanharam a introdução do ideograma no Japão, mas não coincidem com a maneira que ele "deve" ser lido considerando-se as regras de sua construção e pronúncia.
Por exemplo, os Kanjis seguintes têm uma variedade de leituras nestes sistemas:
A forma mais comum de leitura é a “kan’on”. Já a leitura “go’on” é comum especialmente na terminologia budista como 「ごくらく」 (極楽) que significa "paraíso". A leitura tou’on ocorre em algumas palavras como 「いす」 (椅子) = “cadeira”.
NOTA: uma vez que os “Kokuji” são direcionados para as palavras nativas, geralmente possuem apenas leitura Kun.
Naturalmente, as leituras ON são agora bastante distintas da pronúncia do chinês moderno. Isto é devido a várias razões – empréstimos de diferentes dialetos, adaptação da pronúncia para ajustar o idioma japonês, e as mudanças em ambos os lados ao longo dos séculos. Mas as semelhanças são bastante evidentes, uma vez que empréstimos são feitos, e linguistas têm usado até mesmo a pronúncia japonesa como uma ajuda na reconstrução da antiga pronúncia chinesa.
2. Kun’Yomi (訓読み): é a leitura da palavra japonesa nativa existente antes da introdução de caracteres chineses no Japão, que foi anexada ao Kanji com base no significado original do ideograma. É escrita em Hiragana.
Entretanto, há Kanjis cujas leituras Kun a eles atribuídas não refletem o significado original chinês. Estes não são considerados kokujis, mas são chamados 「こっくん」 (国訓). Observe alguns exemplos:
A leitura Kun é usada para palavras nativas, principalmente em adjetivos e verbos. Nesse caso, geralmente há uma sequência de Kana (chamada okurigana) que vem anexada aos ideogramas complementando a pronúncia da palavra e será a parte que sofrerá flexões. Observe o exemplo:
Como você leria o Kanji em 「食べる」?
Vamos observar as leituras do ideograma em questão:
Primeiramente, como 「食べる」 se trata de um verbo, deve-se considerar a leitura Kun. Mas qual é a correta, haja vista que temos quatro leituras Kun possíveis?
Basta observar o okurigana que acompanha o Kanji. Neste caso é 「べる」, logo, segundo a tabela acima, a pronúncia correta para o ideograma em questão é 「た」. Esquematizando, temos:
E a leitura dos caracteres chineses permanece mesmo que o verbo esteja conjugado em diferentes formas:
「食べる」 >>> 「食べた」= 「たべる」 >>> 「たべた」(a leitura para 「食」 continua inalterada)
NOTA: O okurigana também serve para distinguir entre os verbos transitivos e intransitivos (mais sobre este assunto depois).
4.3. COMO LER OS KANJIS: REGRA BÁSICA (E BEM BÁSICA MESMO)
Como regra geral (mas não dogmática), a leitura Kun é usada para palavras nativas, principalmente em adjetivos e verbos. Nesse caso, geralmente há uma sequência de Kana (chamada okurigana) que vem anexada aos ideogramas complementando a pronúncia da palavra e será a parte que sofrerá flexões. Quando se trata de outras classes de palavras, geralmente quando um Kanji aparece isoladamente, é usado kun'yomi, enquanto quando dois ou mais aparecem juntos formado uma composição de Kanjis (じゅくご), para expressar uma única palavra, é usado on'yomi.
Como exemplo, repare nos Kanji abaixo:
Agora, observe-os no exemplo a seguir:
Na primeira ocorrência, 「新」 aparece isolado (sem outro Kanji o acompanhando), então, a pronúncia é “Atara.shii”, lido com o Hiragana que o segue e significa “novo” .
Na segunda ocorrência, 「新」 aparece acompanhado pelo Kanji「聞」, portanto, será usada a on’yomi de ambos. Desta forma, juntos formam 「しん.ぶん」, que significa “jornal”.
4.4. LEITURAS ESPECIAIS
Ler Kanji requer conhecimento de vocabulário e assimilação. Isso porque, embora seja possível estabelecer regras gerais para quando usar on'yomi e quando usar kun'yomi, há várias exceções e nem sempre é possível, mesmo para um falante nativo, saber como ler um ideograma (ou composição) sem o conhecimento prévio. Nestes casos, as leituras precisam ser memorizadas individualmente. Para fins meramente didáticos, dividiremos essas leituras especiais em cinco grupos. Vejamos a seguir.
I. Leituras mescladas: são baseadas nas leituras individuais de cada Kanji, mas não seguem o padrão descrito no tópico anterior. A seguir, alguns exemplos:
王様 = おう.さま (rei) – on’yomi do primeiro ideograma + kun’yomi do segundo ideograma. Esse padrão é chamado de 「じゅうばこよみ」 (重箱読み).
手本 = て.ほん (modelo, exemplo) – kun’yomi do primeiro ideograma + on’yomi do segundo ideograma. Esse padrão é chamado de 「ゆとうよみ」 (湯桶読み).
朝日 = あさ.ひ (manhã) – kun’yomi do primeiro ideograma + kun’yomi do segundo ideograma.
II. Leituras extras: chamada de 「なのり」 (名乗り), é a leitura presente em alguns ideogramas, geralmente intimamente relacionada com o kun'yomi. É usada principalmente para nomes de pessoas e, às vezes, para nomes de lugares (quando não se usam leituras únicas não encontradas em outro lugar). Observe o exemplo abaixo:
III. Leituras atribuídas: são leituras que não têm correlação com as pronúncias reais de um caractere. Porém, leva-se em consideração o seu significado individual e se estabelece uma nova pronúncia. Dividem-se em dois tipos:
A) Jukujikun (熟字訓): como vimos, ao importar um Kanji, a ele era atribuída a palavra nativa que correspondia ao seu significado original. Tomando carona neste conceito, Jukujikun é a leitura nativa aplicada, não a um único Kanji, mas a uma composição fixa de Kanjis adotada oficialmente para representar uma palavra japonesa. Observe o exemplo abaixo:
Como você leria a composição 「明日」?
Esta composição é usada para representar o conceito “amanhã” na língua chinesa (lembre-se que os Kanjis expressam conceitos). A palavra japonesa com o mesmo significado é 「あした」 ou 「あす」, e foi aplicada a estes caracteres, já que a leitura Kun individual não resultaria na palavra com o significado proposto pelos caracteres. Assim temos:
Um ponto muito importante que deve ser considerado é que uma Jukujikun é aplicada considerando-se a composição como um todo. Portanto, não é possível uma separação do tipo: 「明」= 「あ」, 「日」= 「す」.
Normalmente as composições em que uma Jukujikun é aplicada, ainda assim podem ser lidas em suas leituras padrão. Observe:
Como você leria a composição 「今日」?
Pode ser de três maneiras:
1ª. 「こんじつ」 (On’yomi)
2ª. 「こんにち」 (On’yomi)
3ª. 「きょう」 (Jukujikun)
B) Gikun (義訓): é a leitura de um Kanji (ou composição) quando este é usado de maneira improvisada – e somente dentro de contextos muito específicos – para substituir a grafia original de uma palavra. Evidentemente, nestes casos, ao Kanji (ou composição) em questão é atribuída a leitura da palavra que se destina a substituir. Observe os exemplos abaixo:
1) Como você leria a composição 「小宇宙」?
Normalmente lê-se 「しょううちゅう」. Entretanto, se estiver subentendido o animê “Os Cavaleiros do Zodíaco”, deve-se levar em consideração que esta composição é usada para substituir a grafia 「コスモ」 que significa, “cosmo”. Portanto, neste caso específico, deve ser lida 「コスモ」 e não 「しょううちゅう」. Esquematizando, temos:
2) Como você leria o ideograma 「寒」?
Normalmente é lido 「かん」 ou 「さむ」, mas dependendo do contexto em que está inserido, é usado no lugar do ideograma padrão para “inverno” 「冬」. Portanto, deve ser lido 「ふゆ」.
NOTAS:
1. Gikun também aparece em alguns nomes de família japonesa, e como vimos, é amplamente utilizada em filmes, mangás, jogos e animês para nomes de personagens, golpes, cidades fictícias, etc...;
2. Acredita-se que muitas das composições lidas em Jukujikun foram inicialmente Gikun;
2. Composições criadas também podem ter Gikun. É o caso do nome original de “Os Cavaleiros do Zodíaco” (聖闘士星矢), onde 「聖闘士」 é uma combinação de 「聖」 e 「闘士」 e é lido “Saint” 「セイント」 em vez de 「せいとうし」.
IV. Leitura de nomes: esse é um aspecto complexo. Tanto que formulários possuem um campo para que a pessoa escreva a pronúncia do nome em Kana, sendo que esse campo é verificado para assegurar que a pessoa não se esqueceu de preenche-lo. Você pode tentar decorar diversos nomes, tentar adivinhar, usar um dicionário de nomes, etc. Porém, na prática, ao ver um nome escrito, a única forma de ter certeza absoluta de como a pessoa se chama (e mais fácil) é perguntando a pronúncia a ela.
V. Leituras simplificadas: é a leitura baseada nas leituras individuais dos caracteres, porém sutilmente alteradas para tornar a pronúncia mais fácil ou fluída. Ocorre basicamente de três maneiras:
A) Rendaku (連濁): é o fenômeno em que a sílaba inicial do último elemento de uma palavra composta é vozeada. Ocorre normalmente em substantivos japoneses, mas também é visto em partículas, tais como 「だけ」,「ばかり」 e 「ぐらい」ou em Kango (lição 9). Observe:
Como você leria a composição 「手紙」?
A leitura Kun de cada caracter é 「手」=「て」 e 「紙」= 「かみ」. Entretanto, não é lida 「てかみ」, mas sim 「てがみ」.
Mas o que causa o rendaku?
Bem, seria mais fácil reformular a pergunta para: “o que NÃO causa o rendaku?”. E para respondê-la, vamos recorrer, em um primeiro momento, à Lei de Lyman, que é chamada assim por que Lyman foi a pessoa que encontrou um padrão de exceções para o fenômeno de rendaku. Existem casos estranhos em que essa lei é quebrada, mas como essas exceções são muito poucas, normalmente não há necessidade de um estudo profundo acerca delas. O que a Lei de Lyman afirma? Vejamos:
“O rendaku não ocorre quando o segundo elemento do composto contém uma obstruinte vozeada em qualquer posição.”
Primeiramente, devemos definir o que é uma obstruinte vozeada. De uma forma simples, é um som consonantal (por isso, não uma vogal), que é formado ao se obstruir o fluxo de ar na garganta. Talvez leve um tempo para você entender isso, mas se você pronunciar vários destes sons lentamente perceberá que sua garganta tem que fechar um pouco (e obstruir o fluxo de ar), a fim de que som seja emitido (também fazem uma vibração em sua garganta). Então, “obstruinte vozeadas” no japonês são sons que possuem o dakuten. Observe os exemplos:
1. 「恋人」= 「こいびと」= amado(a), namorado(a)
A composição acima deveria ser lida 「こいひと」, mas como NÃO possui obstruinte vozeada no segundo elemento 「ひと」, o rendaku ocorre, ficando 「こいびと」.
2. 「山火事」= 「やまかじ」= incêndio florestal
O segundo elemento da composição acima 「かじ」 POSSUI uma obstruinte vozeada 「じ」. Portanto, o rendaku não ocorre, devendo ser pronunciada 「やまかじ」 e não 「やまがじ」.
Há algumas exceções, especialmente com a consoante nasal 「ん」 e certos sufixos. O quadro abaixo mostra exemplos de Lei de Lyman em ação. Observe as exceções que são dadas também (a coluna “causa” ilustra por que o rendaku é cancelado ou não):
Saindo da Lei de Lyman, seguem outros pontos importantes acerca do Rendaku:
I. Quando há um “dvandva”, isto é, objetos que são conectados dando um sentido de [A e B], o rendaku não ocorre:
II. Há palavras que o rendaku ocorre dependendo da restrição de ramificação.
- Se uma palavra tem o seu significado principal presente no segundo elemento (ramificada à esquerda), o rendaku pode ocorrer:
Note que em ambos os casos, o significado principal está no segundo elemento, mas é restringido pelo primeiro, ou seja, não é de qualquer relógio ou rio que estamos falando, mas de um relógio relacionado a “despertar” e de um rio relacionado à “montanha” respectivamente.
- Se uma palavra tem o seu significado principal presente no primeiro elemento (ramificada à direita), o rendaku não ocorre:
Entretanto, há exceções:
Nos quatro exemplos, note que o significado principal está no primeiro elemento e o segundo é que o restringe.
III. Com nomes, a ocorrência do rendaku é bastante aleatória:
Embora 「ず」 ou 「じ」sejam mais frequentes, quando o rendaku ocorrer em palavras que comecem com 「つ」 ou 「ち」, use o hiragana original. Por exemplo, “sangue” é escrito 「ち」, então, 「鼻血」 deve ser grafado 「はなぢ」 e não 「はなじ」. Entretanto, isto não se aplica quando o segundo elemento não é considerado um elemento separável que agregue significado. Nesses casos, deve-se substituir 「づ」 ou 「ぢ」 por 「ず」 ou 「じ」. Por exemplo, na composição 「稲妻」 o segundo elemento 「妻」 (esposa) não é considerado como um sufixo separável. Por esta razão, em Kana 「稲妻」 é escrito 「いなずま」 e não 「いなづま」. Outro ponto, é que 「づ」 e 「ぢ」 não são usados dentro de palavras de uma única parte, a menos que os sons 「ち」 ou 「つ」 estejam dobrados e vozeados. Considere as palavras a seguir:
B) Onbin (音便): para entendermos o seu conceito, observe a definição de “eufonia”:
“Eufonia é a sucessão harmoniosa de fonemas pelo encadeamento feliz de sons (vogais) e articulações (consoantes). No domínio fônico, a eufonia procura evitar sons estranhos, contrastantes, discordantes ou repetições desagradáveis.”
Em japonês, as mudanças eufônicas (音便) dividem-se em quatro grupos:
I. U-Onbin = é a mudança eufônica em que fonemas são substituídos por 「う」. Ocorre principalmente com fonemas de いだん e うだん. É raro com fonemas de あだん, えだん e おだん;
II. I-Onbin = é a mudança eufônica em que fonemas são substituídos por 「い」. Ocorre principalmente com fonemas de いだん;
III. Hatsu-Onbin = é a mudança eufônica em que fonemas são substituídos pelo fonema nasal 「ん」. Assim como o U-Onbin, ocorre principalmente com fonemas de いだん e うだん e é raro com fonemas de あだん, えだん e おだん;
IV. Soku-Onbin = é a mudança eufônica em que fonemas são substituídos pelo sokuon 「っ」. Assim como o I-Onbin, ocorre principalmente com fonemas de いだん;
Com o termo “Onbin” definido, obeserve o exemplo:
1) Como você leria a composição 「玄人」?
Neste exemplo, deve-se usar a leitura nanori de 「玄」=「くろ」 juntamente com a Kun’yomi de 「人」=「ひと」. Entretanto, a leitura correta da composição é 「くろうと」. Não se trata, porém, de um Jukujikun ou Gikun, pois é possível decompor o conjunto, o que resulta nas leituras individuais dos Kanjis. O que ocorre neste caso é apenas uma “mudança eufônica para u” (U-Onbin) do que seria 「くろひと」.
***
Em muitos casos as alterações eufônicas envolvem outras mudanças sonoras que fazem parte do fenômeno em si. Porém, para fins meramente didáticos, chamaremos estas de “alteração derivada”. Vamos pegar como exemplo a palavra 「なこうど」 e observar a sua origem e evolução (as partes em negrito destacam as alterações feitas):
「中-人」: なかびと→ なかうど= なこうど「仲人」 (pronúncia e Kanji atuais)
Agora, vamos identificar alterações sofridas:
1) Rendaku: なかひと→ なかびと;
2) Mudança eufônica para u: なかびと→ なかうと;
3) Alteração derivada (como uma consoante vozeada foi retirada, vozea-se a consoante seguinte): なかうと→ なかうど;
4) Tenko: なかうど→ なこうど
Na língua japonesa as alterações sonoras são muito comuns, mas não existem regras quanto a isso. Com o tempo, você perceberá que elas costumam ocorrer de acordo com o agrupamento de fonemas, sendo determinada alteração mais comum (não regra) para um agrupamento específico. Por exemplo, é comum que o conjunto 「つひ」 seja alterado para 「っぴ」:
Como você leria a composição 「月日」?
Nesta composição deve se empregar a leitura On, ou seja, 「がつひ」. Entretanto, neste caso, o conjunto de fonemas 「つひ」 é modificado para 「っぴ」, o que resulta em 「がっぴ」.
C) Apofonia: existe outro fenômeno que na linguística é chamado de “apofonia” (também conhecido como "ablaut", sendo este termo o mais comum na literatura linguística de grande prestígio). Sem entrar em explicações detalhadas (que serão dadas na lição 9), por enquanto, importa saber que esse fenômeno diz respeito à mudança de vogal da pronúncia de um Kanji dentro de uma composição. Por exemplo, a palavra 「まぶた」 que, significa “pálpebra”, originou-se da composição 「目蓋」, onde 「目」 (め) = olho e 「蓋」(ふた) = cobertura, tampa . Veja como aqui dois fenômenos ocorreram:
1) Apofonia, onde 「目」 (め) passa a ser pronunciado 「ま」;
2) Rendaku, onde 「蓋」 (ふた) passa a ser pronunciado 「ぶた」.
Sendo assim, o que seria 「めふた」 tornou-se 「まぶた」.
Infelizmente, parece não haver regras claras com relação a quando deve haver apofonia ou mesmo quais as alterações que devem ser feitas, mas as ocorrências mais comuns são a alternância de 「えだん」 para 「あだん」 e 「いだん」 para 「うだん」 ou 「おだん」.
NOTA: é importante destacar que as mudanças sonoras apresentadas não se restrigem a um grupo de palavras, sendo muito comum em verbos, advérbios, adjetivos, etc.
4.5. FURIGANA E KUMIMOJI
Baseados no tópico anterior, podemos dizer que a leitura dos Kanjis é muito ambígua. Apenas para ilustrar essa dificuldade que até mesmo os nativos podem encontrar na leitura de Kanjis, em novembro de 2008, a imprensa japonesa noticiou que o Primeiro-Ministro Taro Aso frequentemente errava as leituras de alguns Kanjis, muitos considerados de uso comum em seus discursos, questionando assim, sua qualidade como pessoa que ocupa o cargo mais alto do Japão (leia a matéria aqui).
Devido aos seus erros, Aso passou a ser comparado com George W. Bush, e rotulado de "Tarō" uma provocação usada nas escolas para as crianças pouco inteligentes.
Por causa dessa ambiguidade na leitura dos Kanjis, é comum encontrarmos pequenos Kanas, conhecidos como Furigana (também conhecido como 「ルビ」 ou 「ルビー」 = rubi), escritos acima dos ideogramas, ou ao seu lado, chamados de Kumimoji, que mostram como devemos pronunciá-los.
Tal recurso é usado especialmente em textos para crianças ou alunos estrangeiros e mangá, como também em jornais para leituras raras ou incomuns e para ideogramas não incluídos no conjunto de reconhecidos oficialmente.
4.6. O TRAÇADO
Os Kanjis são constituídos de traços, escritos em uma determinada ordem, como o Hiragana e o Katakana. Antes de aprender as regras de ordem dos traços é uma boa ideia aprender quais são os traços básicos possíveis de um Kanji. Tudo começa com os “Oito Princípios de Yong”, que nos mostram os 8 tipos básicos de traço. Acreditava-se que a prática frequente destes princípios asseguraria a beleza na escrita.
Os 8 tipos básicos de traços são apresentados comumente por meio do Kanji 「永」:
Veja uma animação do traçado:
Agora, vamos ver alguns nomes de traços:
O quadro apresentado é apenas para que você veja que existem tipos diferentes de traços, por isso, não se preocupe em decorar o nome. Até por que há várias combinações possíveis de traços, (os chamados “traços compostos” ou “traços complexos”). A seguir apresentaremos os traços e as combinações básicas possíveis:
Métodos chineses costumam apresentar 32 (ou 31) tipos de traços:
Vejamos as regras quanto à ordem de traçado:
1. Kanjis são escritos da esquerda para a direita:
2. Kanjis são escritos de cima para baixo:
3. Traços horizontais normalmente são escritos antes de verticais:
4. Em caracteres simétricos, comece pelo traço do meio, depois esquerda e então direita:
5. Traços que envolvem outros traços são escritos primeiro, com exceção da base, que vem por último:
6. Um traço diagonal para a esquerda é escrito antes que um traço diagonal para a direita:
7. Se uma linha vertical atravessar todo o caractere ela é escrita por último:
8. Se uma linha horizontal cruzar todo o caractere ela é escrita por último:
9. Um traço diagonal vem antes do horizontal se for pequeno e depois do horizontal se for grande:
Uma coisa que você precisa saber é que essas regras não são absolutas, elas irão funcionar para a maior parte dos casos, mas não todos. Então fique avisado, se encontrar um Kanji que não obedeça alguma dessas ordens, não é um erro na regra e sim uma exceção.
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